Porque é que precisamos de um Tratado?
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Actualmente, não existe um quadro jurídico internacional vinculativo para estabelecer a responsabilidade das corporações transnacionais na área dos direitos humanos e da protecção ambiental, nem existe qualquer garantia de acesso à justiça e a vias de recurso para as populações afectadas pelas actividades dessas corporações.
- Após 26 anos de processo, a Chevron foi condenada pelos tribunais Equatorianos ao pagamento de 9,5 mil milhões de dólares a 30.000 pessoas afectadas na Amazónia. Mas a sentença não foi aplicada. Pelo contrário, a Chevron atacou o Equador perante o Tribunal Permanente de Arbitragem num processo de ISDS, obtendo um parecer favorável.
- Na sequência do colapso da Rana Plaza em Bangladesh e do incêndio na fábrica Kik no Paquistão, as pessoas afectadas tiveram um recurso extremamente limitado para obter danos e reparações proporcionais aos danos sofridos: as empresas contratantes não tinham activos no país e tiraram partido de casos de limbo legal para escapar de qualquer responsabilidade.
- Em Moçambique, as empresas de agronegócio têm agarrado constantemente terras comunitárias, abusando e violando os seus direitos humanos, através de processos de consulta comunitária deliberadamente mal conduzidos, privando assim as populações locais do seu acesso a meios de subsistência, fontes de água, escolas e mercados, ao mesmo tempo que criam tensões e conflitos sociais. A CTN Norueguesa Green Resources tem uma relação promíscua com o governo para assegurar que os seus interesses são salvaguardados acima de tudo e é apoiada por influentes agências doadoras e instituições financeiras internacionais que ajudam a perpetuar a sua impunidade.
- A Global Witness revelou que mais de três pessoas foram assassinadas a cada semana em 2018 por defenderem as suas terras e o nosso ambiente, com incontáveis mais criminalizadas. Um padrão que persiste inabalável, uma vez que 212 defensores da terra e do meio ambiente foram mortos em 2019 – o maior número de mortes jamais registado.
Estes retratos de casos de impunidade corporativa recordam-nos a necessidade e urgência de ir além de uma visão de responsabilidade social corporativa (RSC) e outros mecanismos que se baseiam quase exclusivamente em compromissos voluntários de auto-regulação. Isto é tanto mais urgente quanto 3.400 acordos comerciais e de investimento protegem os interesses das corporações transnacionais através de mecanismos de Resolução de Litígios entre Investidores e Estados. Como diz Olivier Petitjean, este estado de coisas impõe um grande fardo aos municípios na sua busca de justiça e protecção ambiental:
“Em teoria, as cidades têm o direito de defender os seus interesses e terminar as suas relações contratuais com empresas privadas se tiverem boas razões para o fazer. Na prática, porém, as coisas não são assim tão simples. Mesmo quando um contrato expira e uma autoridade local exerce o seu direito aparentemente muito normal de não o renovar e levar o serviço de volta à gestão pública, ainda existem vias legais para as empresas contestarem a decisão ou, pelo menos, reclamarem grandes somas de dinheiro em compensação. O mais famoso (…) destes mecanismos legais é a resolução de litígios investidor-estado (ISDS)”.
Olivier Petitjean (O Futuro é público. Rumo à propriedade democrática dos serviços públicos)
Direito a um ambiente seguro e limpo na Alemanha
A Vattenfall, uma empresa Sueca de energia, lançou em 2009 uma acção de ISDS de 1,9 mil milhões de dólares contra a Alemanha para contestar os pedidos do governo Alemão e do município de Hamburgo no sentido de proteger melhor o Rio Elba enquanto uma central de carvão é explorada. Em vez de cumprir estes requisitos, a Vattenfall lançou o seu caso de ISDS, alegando que as regras ambientais de Hamburgo equivaliam a uma expropriação. Para evitar a incerteza de uma eventual decisão de ISDS a ordenar o pagamento de uma indemnização maciça, o governo Alemão chegou a um acordo com a Vattenfall em 2010. O acordo obrigou o governo de Hamburgo a retirar as suas exigências ambientais adicionais e a emitir as licenças contestadas necessárias para que a central pudesse prosseguir. O acordo também renunciou aos compromissos anteriores da Vattenfall de mitigar o impacto da central de carvão no Rio Elba.
Acesso à justiça e o direito à saúde e a um ambiente seguro na Índia
Em Dezembro de 1984, uma fábrica de pesticidas da Union Carbide em Bhopal, Índia, derramou mais de quarenta toneladas de gás venenoso na comunidade que circundava a fábrica. Os sobreviventes da tragédia e vários grupos de direitos humanos têm vindo a exigir melhor compensação, reabilitação adequada, cuidados médicos adequados às vítimas de gás, remediação do local contaminado e do solo e águas subterrâneas da cidade. E, claro, um julgamento e acusação rápidos dos acusados. No entanto, pouco ou nenhum progresso tem sido feito, mesmo 36 anos depois. A Dow Chemical, a empresa-mãe da Union Carbide, tem evitado constantemente a sua responsabilidade legal desde que adquiriu a Union Carbide em 1999.
Quando o país congelou as suas taxas de utilidade em resposta à sua crise financeira de 2001-2002, foi atingido por mais de 40 acções judiciais de investidores, incluindo a Suez & Vivendi (França), a Sociedad General de Aguas de Barcelona S.A (Espanha) e a Anglian Water (Reino Unido). Os tribunais de ISDS concluíram que a Argentina tinha violado o direito dos investidores a um “tratamento justo e equitativo” ao tentar atenuar uma das piores crises económicas do país. Até 2014, o país tinha sido condenado a pagar um total de 980 milhões de dólares.
Nos últimos anos, a Blackstone adquiriu propriedades no Raval, um dos bairros mais pobres de Barcelona, para despejar famílias destas propriedades para as vender ou alugar a uma taxa muito mais elevada. Mas a mobilização conjunta da comunidade local e da Câmara Municipal de Barcelona, sob o lema #RavalVsBlackstone, venceu. A corporação foi forçada a negociar e a deixar as famílias ficar e pagar uma renda social.
No Chile, as farmácias privadas abastecem a grande maioria da população com medicamentos e o governo não regula os preços. Actualmente, três empresas farmacêuticas dominam 90 por cento do mercado. Estas empresas têm sido investigadas e foram condenadas várias vezes por crimes de conluio na fixação dos preços dos medicamentos. Face ao elevado preço dos medicamentos, o governo local da Recoleta criou a primeira “Farmácia popular” do país em 2015. A farmácia oferece medicamentos baratos para os residentes da comunidade que são tratados no sistema público de saúde. Em alguns casos, houve economias de até 70 por cento em comparação com o que os residentes da Recoleta costumavam gastar todos os meses em medicamentos. Entre 2015 e 2018, foram criadas 40 novas farmácias públicas sob o modo Recoleta, e foi criada a “Associação Chilena de Farmácias Populares”, que reúne 80 municípios.
Em 2017, a França adoptou uma lei sobre o dever de vigilância e tornou-se o primeiro país a aprovar legislação para invocar a responsabilidade civil das corporações por violações dos direitos humanos e do ambiente causadas pelas suas subsidiárias, fornecedores e relações comerciais ao longo da sua cadeia de valor, seja em França ou no estrangeiro. Processos legislativos semelhantes e decisões do Tribunal Supremo estão actualmente em curso em toda a União Europeia, Austrália, Canadá e noutros lugares.
Um Tratado da ONU permitiria aos Estados acordar universalmente os elementos que regulam a conduta das corporações transnacionais no direito internacional dos direitos humanos e estabelecer as bases para um acesso efectivo à justiça para aqueles que sofrem de má prática corporativa.
Hoje, cidades e comunidades estão cada vez mais a unir forças por meio de redes e iniciativas comuns, aumentando o seu espaço democrático e construindo alternativas concretas.